Privatizações reduzem indução do desenvolvimento, alerta Tarso em entrevista

O ex-governador Tarso Genro (PT, 2011-2014) avalia que as privatizações das companhias Estadual de Energia Elétrica (CEEE), de Gás do Rio Grande do Sul (Sulgás) e Riograndense de Mineração (CRM) vão reduzir a capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento no Rio Grande do Sul. “Essas privatizações vão reduzir muito a capacidade de o Estado aportar infraestrutura e fazer encomendas públicas à iniciativa privada, porque os recursos vão ser usados, como já confessou o governador, para financiar a folha.”

O petista também rebate críticas do ex-governador José Ivo Sartori (MDB, 2015-2018) e do governador Eduardo Leite (PSDB), que – direta ou indiretamente – acusam o governo de Tarso de ter agravado a crise das finanças do Estado, especialmente por ter dado aumento salarial escalonado aos servidores da segurança pública, sendo que parte do reajuste foi paga pelo governo seguinte.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Tarso questiona, ainda, a Lei de Responsabilidade Fiscal estadual, aprovada por Sartori justamente para impedir que um governador deixe reajustes pendentes ao seu sucessor. “É inconstitucional”, afirma.

Ele projeta, ainda, que o PT deve trabalhar por uma frente centrista nas eleições de 2020 e 2022, sem medo de abrir mão de encabeçar uma possível candidatura unificada.

Jornal do Comércio – Qual é a sua avaliação do governo Eduardo Leite?

Tarso Genro – O governo Leite tem o mesmo projeto do ex-governador José Ivo Sartori. Divirjo dos dois em questões centrais. Por exemplo, não acredito na recuperação do Estado sem a identificação com o projeto nacional. Sem o alinhamento entre governo estadual e federal, o Estado teria apenas soluções paliativas, como, por exemplo, aumentar o estoque da dívida com a União e renegociar os seus índices de correção.

Mas o alinhamento teria que ser com um projeto nacional com características diferentes do atual. Não creio que jogar o País na recessão, reduzir as funções públicas do Estado, diminuir a capacidade de arrecadação do Estado e negociar a dívida com a União de maneira servil, como estão fazendo, possam melhorar a situação financeira do Estado.

O que vai ocorrer no Rio Grande do Sul é o mesmo que vai acontecer no Brasil: vamos ter uma sociedade mais desigual, um Estado menos aparelhado, instituições com funcionamento mais precário, um serviço público decadente. Mas isso não é um erro dos atuais governantes. É um método, através do qual a direita liberal busca uma saída para a crise.

JC – Leite e Sartori argumentam que as medidas de ajuste fiscal são necessárias e permitirão o crescimento da economia em alguns anos?

Tarso – Vamos ter um crescimento daqui a dois, três anos? Sim. Só que esse crescimento vai partir de um patamar extremamente deficitário. A sociedade vai estar mais desigual, mais dividida, o serviço público, mais desqualificado. Até retomarmos o crescimento, vamos ter uma paralisia do PIB (Produto Interno Bruto), o que, historicamente, significa regressão. Depois, teremos pequenos avanços, pequenos surtos de desenvolvimento, que vão ser apresentados como recuperação.

JC – E venda de CEEE, CRM e Sulgás?

Tarso – Essas privatizações vão reduzir muito a capacidade de o Estado aportar infraestrutura e fazer encomendas públicas à iniciativa privada, porque os recursos oriundos da venda das companhias vão ser usados, como já confessou o governador, para financiar a folha. Não vão ser drenados para projetos estratégicos do Estado. Abrir mão da CEEE, por exemplo, significa abrir mão desses instrumentos importantes (aporte de infraestrutura e encomendas públicas). Eu reformaria, reestruturaria e até faria parceria com empresas privadas, mas deixaria o controle do sistema elétrico na mão da CEEE.

As privatizações não impossibilitam um novo ciclo de desenvolvimento, mas vão dificultar gravemente a retomada, porque o Estado vai reduzir sua capacidade de fazer investimentos que não sejam imediatamente rentáveis, como é dever do Estado. Um empresário faz um investimento prevendo o retorno em seis meses, um ano, três anos ou coisa parecida. O Estado faz um investimento que vai ter efeitos ao longo de um ciclo de desenvolvimento.

JC – Defensores das privatizações dizem que a iniciativa privada pode prestar serviço melhor do que CEEE, Sulgás e CRM.

Tarso – Realmente, existem áreas em que a iniciativa privada pode prestar um serviço melhor. Não estou falando especificamente dessas empresas. Por exemplo, não tem por que o Estado ter fábricas de tratores ou de computadores. Tem que ter capacidade financeira e expertise tecnológica para gerar leitos institucionais e materiais por onde as empresas podem percorrer. E se instalar.

Um dos elementos disso que eu chamo de leitos, que fixa as bases para o desenvolvimento da iniciativa privada, são os financiamentos subsidiados para a pequena agricultura e o microcrédito para a pequena empresa. Não poderia fazer política no capitalismo se achasse que as empresas privadas não têm uma função. Têm. E têm uma função predominante no desenvolvimento econômico. No entanto, o que não se pode é retirar do Estado a capacidade de fazer a indução desse processo.

JC – Sartori e Leite criticam a sua gestão por ter gasto mais do que arrecadava, agravando a crise financeira no Estado.

Tarso – Mas são eles que não pagam o salário dos servidores públicos. Isso é um absurdo. Eu geri o Estado nas mesmas condições que os demais governadores. Utilizei, inclusive, um percentual muito menor dos depósitos judiciais do que eles utilizaram. Melhorei o pagamento dos precatórios de uma forma muito mais respeitosa aos credores do Estado.

Ocorre que quem não tem projeto tem que culpar o governo anterior. O (ex-governador Germano) Rigotto (MDB, 2003-2006) atrasou a folha. A (ex-governador) Yeda (Crusius, PSDB, 2007-2010) manteve a folha, mas promoveu um arrocho salarial brutal. O que fiz de diferente? Utilizei toda a máquina pública para promover o desenvolvimento, aumentei muito a arrecadação e melhorei o funcionamento da máquina, corrigindo os arrochos salariais que eles promoveram no período anterior.

JC – Sartori dizia que foi uma irresponsabilidade o aumento salarial que o senhor concedeu aos profissionais da segurança, com parcelas a serem pagas no governo dele…

Tarso – Aumentos salariais para Brigada Militar, Polícia Civil, a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários) e outras categorias importantes. Se ele realmente acreditava nisso, por que não pagou a folha anterior à concessão dos aumentos? Se não concordava com o reajuste, por que não atrasou somente o aumento? Poderia ter separado o reajuste concedido pelo Tarso. Assim, poderia pagar em dia o salário anterior, atrasando apenas os aumentos concedidos pelo meu governo.

JC – Depois do seu governo, foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal estadual, que, entre outras medidas, impede reajustes de um governo para outro. Como avalia essa lei?

Tarso – Impedir que os reajustes se projetem de um governo para outro é uma bobagem arrematada, porque o Estado é uno. A temporalidade dos governos nada tem a ver com o funcionamento do Estado. Essa norma é inconstitucional. Qualquer medida judicial derruba essa norma, tranquilamente. Os governos são contingentes, e o Estado, permanente. Os governos têm que assumir as responsabilidades dos governos anteriores.

Por exemplo, o meu governo destinou uma grande parte da arrecadação para pagar os atrasos, os não pagamentos e as violações de lei que foram realizadas no governo Antonio Britto (MDB, 1995-1998), com aqueles aumentos que se transformaram em precatórios bilionários. Paguei. Tinha que pagar. Era um dever do Estado e, portanto, responsabilidade do governante. O que seria correto é que se proibisse, por exemplo, que se desse aumento dois anos antes de encerrar o mandato.

JC – O que agravou a crise no Estado?

Tarso – Houve uma crise mundial brutal, que implicou a crise do País, que, por sua vez, diminuiu a arrecadação do País e do Estado. Nesse cenário, eles (Sartori e Leite) não fizeram políticas anticíclicas. Além disso, desmobilizaram o Estado, liquidaram com o nosso projeto de desenvolvimento industrial e, com a ausência de uma política para a agricultura familiar, reduziram a movimentação econômica nas pequenas e médias cidades.

Da mesma forma, não conseguiram atrair investimentos do exterior, como eu atraí da China e de outros países. A consequência disso foi que a arrecadação do Estado paralisou e eles começaram a utilizar em dobro os instrumentos que utilizei para financiar o Estado. E ainda atrasaram salários.

JC – Como avalia os primeiros sete meses do governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL)?

Tarso – O governo Bolsonaro deve ser abordado em dois planos. Primeiro, é um governo que desconstitui o tecido político e leva à divisão política do País para a estratosfera da radicalidade. Todos os dias, o presidente desautoriza o sistema democrático. As instituições democráticas recebem com naturalidade e respeito as diferenças regionais, étnicas, ideológicas, políticas, de sexualidade. Isso está sendo desmantelado, porque o primeiro magistrado da nação é avesso a isso. O comportamento dele é revisionista de caráter fascista, que exclui do debate democrático quem pensa de maneira diferente. Isso pode gerar na sociedade uma ruptura incontornável a médio e longo prazos.

O segundo aspecto é econômico. Mesmo do ponto de vista da direita liberal, a primeira reforma deveria ser tributária, para organizar os ônus do País no aporte de recursos para financiamento e funcionamento do Estado. Fizeram o contrário. Com a destruição da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), estão desconstituindo as defesas sociais mínimas das classes trabalhadoras de mais baixa renda. Além de atingir trabalhadores na ativa, atingem os inativos com a reforma da Previdência. No governo Bolsonaro, os resultados mais visíveis são: uma ameaça de ruptura dramática na sociedade brasileira a médio e longo prazos; e o empobrecimento geral das camadas que movimentam o consumo no País.

JC – Qual deve ser o papel do PT nas eleições de 2020 e 2022?

Tarso – Vejo dois caminhos possíveis. Primeiro, a apresentação de um candidato em 2022 com um programa centrista, cuja meta fundamental seria a retomada do crescimento econômico e a distribuição de renda. E que também abra uma escotilha para uma reforma política ampla no País. Então, não seria um governo petista distributivo, forte, como conseguimos nos governos (do ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT, 2003-2010). A outra possibilidade é uma polarização entre a ultradireita e todo o campo democrático. Hoje, a polarização que leva a 2022 não é entre a esquerda e a direita, mas entre o ultraliberalismo de caráter fascista e o resto da nação, que vai ficar apática, se eles ganharem a eleição.

JC – Quem seria um líder para essa frente centrista?

Tarso – Tenho, por Fernando Haddad (PT), um respeito muito grande, é um líder autêntico que está surgindo. O Guilherme Boulos (PSOL) também é um líder respeitável e progressista. Os governadores do Nordeste estão dando exemplos de sobriedade e podem ser referidos como líderes de centro, centro-esquerda.

JC – Qual deve ser o papel do PT em 2020?

Tarso – Lançar bons candidatos em frentes progressistas, principalmente nas grandes capitais, e tentar formar essa malha básica para a nova frente política em 2022. Mais importante do que ganhar as eleições é assumir essa tarefa.

JC – Quem seria o candidato que lideraria essa frente em Porto Alegre em 2020?

Tarso – O PT tem Pepe Vargas, Miguel Rossetto, Maria do Rosário. O PDT tem Juliana Brizola. O PCdoB tem Manuela d’Ávila. Bons nomes não faltam para a esquerda aqui no Estado. Temos que discutir o projeto antes dos nomes. E o nome não precisa ser do PT. Pode ser qualquer outro que se comprometa com o programa, que tenha uma tradição democrática e que tenha compromisso com a preservação da unidade popular.

Fonte: Jornal do Comércio

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