Projeto Temer vai acabar com o SUS imediatamente, diz Padilha
O Sistema Único de Saúde vai acabar “de imediato”, caso o conjunto de medidas de Temer for adiante. A análise é de Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde do governo Lula e atual secretário municipal da pasta na cidade de São Paulo.
O governo Temer – que Padilha chama de “golpista” – aprovou o aumento da Desvinculações das Receitas da União (DRU) de 20% para 30%. E estendeu a medida até 2023. A PEC aprovada também permite, pela primeira vez, que estados e municípios também adotem a DRU.
Além disso, os investimentos públicos, de um ano para outro, não terão aumento real, passando a incorporar só a inflação anterior. O fim do fundo soberano do pré-sal – espécie de poupança que seria usada para financiar saúde e educação – será outro duro golpe.
E por mais que o governo interino jure que não vai diminuir os repasses para a saúde, a verdade é que essas medidas, que mesclam arrocho, queda na arrecadação e diminuição de transferências para programas sociais, vão atingir em cheio os direitos da população.
Padilha nos recebeu em seu gabinete, em São Paulo. Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Com as novas medidas anunciados por Temer, como a ampliação da DRU (Desvinculação das Receitas da União) e a promessa de manter os investimentos atrelados apenas à inflação, os movimentos sociais dizem que o SUS pode acabar. Mas não é possível acabar com o SUS assim, de repente, ou é?
Em primeiro lugar, eu acho que devemos sim repensar o tamanho do SUS. Para maior. Mais dinheiro, mais médicos, mais leitos, mais acesso. O SUS é um projeto ousado e que sempre dependeu muito da luta dos movimentos sociais. E a única chance de o SUS não acabar, com as medidas anunciadas pelo governo golpista, é essa intensidade de luta continuar. Quando esse governo sinaliza que vai desvincular recursos que são para saúde e educação, diz que vai acabar com o fundo soberano do pré-sal – que era uma das alternativas para o aumento do orçamento da área da saúde, uma espécie de poupança – e quando sinaliza que não tem nenhuma intenção de mudar a forma de cobrança de impostos neste país, ele diz que vai sufocar o SUS. Significa interromper os repasses para o SAMU, Farmácia Popular, acabar com o Mais Médicos – porque o Mais Médicos é inteiramente financiado pelo governo federal. Quando o governo e seus ministérios se desobrigam de canalizar recursos para esses programas, o que isso significa de risco para o SUS? Além de piorar o atendimento, de fazer as pessoas sofrerem, vai fazer com que as pessoas desacreditem ainda mais na possibilidade de que o serviço público possa oferecer um atendimento de qualidade para ela. E o apoio da população é essencial para manter este projeto.
Vamos fazer um exercício aqui. Aprovada uma agenda como essa, e mantida, quanto tempo levaria para que o SUS deixasse efetivamente de existir?
Seria de imediato. Hoje, nós já fazemos um grande esforço para sobreviver como estamos, com um financiamento muito abaixo do que os outros países praticam. O Brasil, com todo o esforço, investe três vezes menos per capita do que a Argentina, Uruguai, Chile. Sete vezes menos que Portugal. Porque nós tivemos a ousadia de criar o SUS, mas não tivemos a ousadia de ter um sistema tributário de financiamento deste Estado de Bem-Estar Social semelhante ao dos países europeus nos quais nos inspiramos. A Europa construiu esse sistema e junto com isso construiu imposto sobre grandes heranças, taxação sobre quem vive de rendimentos, alíquotas de imposto de renda mais elevadas para quem ganha muito e mais baixas para o trabalhador. Para manter esse projeto, é muito importante também mudar a forma de financiamento do SUS. Então, é uma agenda que promove o fim do SUS de imediato. Se a União e os estados se desobrigam a gastar o mínimo obrigatório, isso inviabiliza o atendimento e impede avanços.
Falando em tributação, os governos do PT também não mexeram nessa estrutura. Por quê?
Porque não somaram forças suficientes no Congresso para aprovar isso. Em 2003, primeiro ano do presidente Lula, eu fazia parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, reunimos governadores e todos os membros do Conselho e produzimos uma proposta de reforma tributária. Nessa proposta, por exemplo, havia a cobrança de IPVA de helicóptero. Não é justo o trabalhador que tem moto pagar IPVA e o rico que tem helicóptero, iate, não pagar. O governo fez a proposta com participação de todo o Conselho, que tinha da Fiesp até a CUT, da CNA até o MST. Fechou propostas de consenso e mandou pro Congresso. E o Congresso só aprovou aquilo que lhe interessava no momento, como a prorrogação da CPMF, a unificação de alguns tributos, descentralizou recursos para os municípios. Mas não mexeu no núcleo da tributação. Em 2008, uma nova tentativa, fechamos uma proposta de consenso para unificação do ICMS, e ali o Congresso parou.
Mas ali foi outra circunstância. A composição do Congresso mudou, tínhamos um Congresso mais conservador, tanto que perdemos a CPMF no Senado. E ali entrou outra circunstância que foi a crise econômica nos Estados Unidos, que deu início à maior crise financeira do planeta. Houve uma retração dos atores políticos. Já no primeiro mandato da presidenta Dilma, em que havia um Congresso melhor, um Senado menos conservador, infelizmente essa agenda não foi assumida com a força que eu acho que deveria ter sido. Acho que é possível retomar o tema com o apoio dos setores médios do país, porque eu entendo a irritação da classe média que reclama de que só ela paga imposto.
Você disse que o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social formulou algumas propostas de consenso, ou seja, com uma determinada força política. Cite algumas que, progressistas, não foram adiante.
Além da tributária, a reforma política. O Conselho fez um seminário e propôs pontos de uma reforma política e apresentamos ao Congresso. Discutimos financiamento, organização partidária, fidelidade partidária, fim das coligações proporcionais… O Conselho fez essas propostas e apresentou para o Congresso.
Nenhum parlamentar acolheu o projeto?
Parlamentares isoladamente. Levaram para a Comissão da Reforma Política, mas infelizmente, e acho que isso foi um erro inclusive dos partidos de esquerda, que muitas vezes ficaram preocupados com o que significava a reforma política para o interior do seu partido, o dia a dia do partido, e não perceberam a importância da reforma política para nosso país.
Como estão os repasses para a cidade de São Paulo? Já dá pra sentir os efeitos desse novo governo ou já havia problemas anteriores, em função do ajuste fiscal?
O Fernando Haddad é o primeiro prefeito da história democrática de São Paulo a ter seu mandato inteiro sob recessão. No segundo semestre de 2013, o Estado de São Paulo já tinha parado de crescer. Em 2014, o Estado de São Paulo teve recessão. 2015, recessão no país, 2016 recessão no país. Ele vive os quatro anos de seu mandato com retração de repasses, tanto estaduais quanto federais. E mesmo assim vai ser o primeiro e montar e colocar pra funcionar um hospital num mandato só. Já foi assim com hospital Santa Catarina e vai fazer isso com o hospital de Parelheiros. E está construindo outro na Vila Brasilândia. Vamos ter 36 hospitais-dia na periferia da cidade. O ano de 2016 é um ano em que praticamente não houve repasses novos para a cidade de São Paulo. E mesmo assim o Haddad começou com 18% da receita investida em saúde e já chegou a 20% da receita e talvez atinja 21% em 2016.
Há muita confusão na cabeça das pessoas a respeito das atribuições de cada esfera de poder no SUS. Explique um pouco qual é o papel do governo do Estado de São Paulo, e dos Estados em geral.
Nós construímos o SUS em três instâncias, e é algo que está sendo resolvido ainda. Há também a questão da formação dos profissionais. É preciso que as escolas preparem os alunos para esse sistema. A primeira medida concreta neste sentido foi o Mais Médicos. O Ministério começou a formar médicos com a cara que o SUS precisa. Mas a gente precisa consolidar isso ainda. Outro problema é a participação de estados e municípios. Os sistemas nacionais de saúde em outros países ou ocorrem em um estado único, como por exemplo, na Inglaterra, em que o Ministério da Saúde dirige de cima abaixo, ou no máximo dois níveis de governo. Já o nosso sistema exige uma maior cooperação entre os três níveis de governo. Com tempos de eleição diferentes. Então, o primeiro ano de uma administração municipal já é o terceiro ano da gestão estadual. Isso complica a organização de um planejamento comum. E isso fica muito mais difícil quando o estado não assume nenhum compromisso. O Estado de São Paulo é um exemplo disso. É o único estado, entre os grandes da nação, que não coloca um centavo no SAMU. Vem prometendo há vários anos colocar mais recursos para as equipes de saúde da família, mas não cumpriu, não coloca praticamente nada. Tem a prática de fechar seus equipamentos (hospitais, ambulatórios e outros) porque a responsabilidade acaba recaindo sobre os municípios. Eu brinco que desde que o padre Anchieta chegou à cidade de São Paulo, nasciam mais crianças em hospitais estaduais do que em municipais. Depois de 2013, isso se inverteu. Passaram a nascer mais crianças em hospitais municipais, porque o estado está fechando leitos. E como o PSDB está há mais de 20 anos no poder, isso virou uma cultura institucional de não haver cooperação com o município. Teoricamente, o município tem de cuidar da atenção básica – tudo aquilo que é antes do hospital – e o estado se responsabilizar pelo atendimento de alta complexidade. Mas isso não está acontecendo, o município está assumindo responsabilidades do estado.
Há um exemplo de procedimento de alta complexidade que o Estado de São Paulo abdicou de fazer?
Por exemplo: as crianças podem às vezes nascer com má formação no coração. É preciso uma cirurgia para corrigir isso. É uma responsabilidade do governo estadual. Nos últimos anos, o município teve de fazer mais cirurgias como essa do que o estado.
Estamos vivendo neste momento uma contradição. O desemprego já é alto e deve aumentar nos próximos meses. O trabalhador e a trabalhadora perdem seus planos de saúde e precisam ir para o SUS. E vão encontrar um SUS mais fraco. Como é que se vai resolver isso?
Essa é uma das razões pelas quais eu digo que as medidas do governo interino vão inviabilizar o SUS. Ao mesmo tempo em que toma medidas recessivas, acena claramente que vai diminuir os repasses para o SUS. E também vai reduzir a regulação sobre os planos de saúde. E o surgimento de planos de saúde de baixa qualidade é duplamente nocivo para o SUS, porque reforça algo que já existe: a pessoa tem o plano, mas na hora de procedimentos mais complexos, têm de procurar o SUS. E em várias regiões da cidade, não há hospitais desses planos por perto. Segundo, porque o plano de saúde inclui uma isenção tributária, ou da pessoa ou da empresa. É um gasto tributário do governo que reduz os investimentos públicos na saúde. Essa agenda desse governo é uma agenda para inviabilizar o SUS.
Então não é exagero: o SUS vai acabar?
Vai acabar. Se esse golpe se confirmar e sua agenda for implementada, viveremos o pior período de retirada de direitos da maioria da população brasileira. Por isso a importância da resistência.
Como os sindicatos podem ajudar a esclarecer a população, mesmo os sindicatos cujas categorias têm plano de saúde privado?
Primeiro, a tarefa é nossa, do pessoal da saúde. Mostrar o que é o SUS e onde ele atua. Porque, por exemplo, o SUS está presente no local do trabalho. Quem faz a vigilância no local de trabalho, para prevenir acidentes e adoecimento, é o SUS. Quando o sindicato precisa fazer uma denúncia, é um órgão do SUS que ele procura. Quando alguém sofre um acidente na rua, mesmo tendo plano de saúde, quem vai socorrer é o SUS. Se qualquer pessoa precisar de transfusão de sangue, é o SUS que vai fornecer. É preciso explicitar cada vez mais para os trabalhadores sobre o que é o sistema, para que virem defensores desse sistema. Lembrar que quando se aposentam, as pessoas perdem a qualidade dos planos de saúde e vão ter de usar o SUS. E há temas que só o SUS enfrenta, como o atendimento a mulheres vítimas de estupro. É importante divulgar essas informações na imprensa sindical, nas assembleias.
Fonte: CUT Nacional