A retirada de direitos sociais é a negação da estabilidade no convívio social

Ao se analisar a conjuntura trabalhista atual e o mundo do trabalho, a presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Valdete Souto Severo, avalia que estamos ignorando os parâmetros da democracia liberal. “A história nos mostra que essas experiências geralmente resultam governos autoritários e violentos”, disse. Em relação ao país, aponta que Brasil vive um momento de luto em relação aos direitos liberais e sociais.

Na avaliação da magistrada, não há democracia se a maioria das pessoas não tem seus direitos sociais garantidos. Uma das formas de se reverter esse quadro e garantir e manter os direitos é a luta da classe trabalhadora. “A greve é exatamente a expressão cunhada para representar esse fenômeno social, pelo qual os oprimidos se voltam contra o opressor e porque agem coletivamente, conseguem obter condições de vida e de trabalho melhores do que aquelas até então praticadas”.

Em entrevista concedia por e-mail ao Brasil de Fato, Severo recorda que até bem pouco tempo, a greve era oficialmente um caso de polícia e a resposta estatal sempre foi a mesma: repressão aos movimentos de resistência.

Valdete Souto Severo, é presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, faz pós-doutorado em Ciências Políticas na UFRGS, é juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), é Diretora e Professora na Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS (FEMARGS) e Diretora Cultural da Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho (ALJT). Também é integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da USP e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social (RENAPEDTS).

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato RS: Por que o direito de greve é essencial numa democracia?

Valdete Souto Severo: A democracia se fundamenta não apenas na possibilidade de divergir e de manifestar livremente o pensamento, eleger seus representantes e ter instituições verdadeiramente independentes que garantam a aplicação do ordenamento jurídico, mas sobretudo na existência de garantias efetivas e moradia, trabalho e saúde com dignidade. Não há democracia se a maioria das pessoas não tem seus direitos sociais garantidos. Pois bem, em um Estado capitalista, que se baseia portanto no consumo e na troca entre capital e trabalho, esses direitos sociais foram ao longo da história “duramente arrancados do capital”, para usar a expressão cunhada por Marx. E o foram através da luta coletiva da classe trabalhadora, que em nosso país se funde com a luta contra a escravidão e, mais tarde, com a luta contra a sangrenta ditadura militar. A greve é exatamente a expressão cunhada para representar esse fenômeno social, pelo qual os oprimidos se voltam contra o opressor e porque agem coletivamente, conseguem obter condições de vida e de trabalho melhores do que aquelas até então praticadas. Não é por acaso que nossa Constituição, construída no período de abertura democrática, consagra a greve como um direito que está no fundamento do Estado (artigo 9 e 37). Até bem pouco tempo, a greve era oficialmente um caso de polícia e a resposta estatal sempre foi a mesma: repressão aos movimentos de resistência. Aliás, seguiu sendo mesmo após 1988, pois não se altera a cultura com texto de lei. É preciso vontade de constituir um novo modelo de sociedade, um modelo que respeite o direito de resistir, de se insurgir e de modificar as “regras do jogo”. Isso é greve.

BdF-RS: Como se defende, hoje, o direito de greve, justamente quando esse direito é tão maltratado, quando a greve é vista como balbúrdia, que atrapalha de trânsito ou, ainda, como restrição ao direito de ir e vir?

VSS: Essa é uma questão importante. Recentemente tivemos uma decisão proferida pela Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho que considerou abusiva a greve das empregadas e empregados das empresas que compõem a Eletrobrás. A paralisação foi realizada em junho de 2018, contra o anúncio da privatização do setor elétrico. Na sessão do dia 11 de fevereiro de 2019, prevaleceu o entendimento de que a greve, por não se dirigir diretamente contra algum ato do empregador no ambiente de trabalho, teve caráter político, sendo, portanto, abusiva.

A ideia de que greve contra privatização é abusiva parte, aqui, de dois pressupostos. Primeiro, de que não há direito à greve política. Segundo, de que a greve contra a venda de estatais à iniciativa privada não se caracteriza como greve por condições de trabalho. Ocorre que a Constituição e a lei de greve dizem exatamente o contrário: que são as trabalhadoras e os trabalhadores que devem decidir quando paralisar e o que defender por meio do movimento de resistência. Na Reclamação n. 54.597, interposta em 4 de julho de 2016, com pedido cautelar, e extinta por perda de objeto em 18/5/2018, o Ministro Dias Toffoli afirmou: “tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum.(…) Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito”. Nas ADI´s 1306 e 1335, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão proferida em 2018, declarou a constitucionalidade do Decreto 4.264/95 do Estado da Bahia, que determina, em caso de paralisação de servidores públicos: sejam os grevistas “convocados’ a reassumirem imediatamente seus cargos, haja instauração de processo administrativo disciplinar caso persista o afastamento, desconto dos dias de greves e exoneração imediata dos ocupantes de cargo de provimento temporário e de função gratificada que participarem do movimento grevista”. Na prática, portanto, o Decreto simplesmente impede que a greve ocorra sem prejuízo irreparável aos trabalhadores que aderirem ao movimento. Trata-se de um momento de grave desconstrução da conquista social representada pelo reconhecimento, por parte do Estado, de que resistir e construir a partir de movimentos coletivos, é um direito que se afigura condição de cidadania.

Parece-me que a defesa precisa ser feita em várias instâncias. No âmbito da institucionalidade, temos mecanismos internacionais que precisam ser utilizados. Além da legislação vigente e do texto expresso da Constituição, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acerca da liberdade sindical, caminham no mesmo sentido: não-intervenção do Estado nas escolhas de luta coletiva, por parte da classe trabalhadora. A Convenção 151 da OIT – ratificada pelo Brasil – estabelece que “os trabalhadores da Administração Pública devem usufruir de uma proteção adequada contra todos os atos de discriminação que acarretem violação da liberdade sindical em matéria de trabalho”. Dentre as quais: “b) Demitir um trabalhador da Administração Pública ou prejudicá-lo por quaisquer outros meios, devido à sua filiação a uma organização de trabalhadores da Administração Pública ou à sua participação nas atividades normais dessa organização” (Artigo 4: 1).

Ora, declarar ilícita a greve é prejudicar os trabalhadores, impedindo-os concretamente de exercer o respectivo direito, que é decorrência lógica de sua organização coletiva. A Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, em 1952, por sua vez, estabelece que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego” (Art. 1º). Em seu Art. 2º, I e II, dispõe sobre “práticas que devem ser consideradas violadoras da liberdade sindical, tais como dispensar um trabalhador ou prejudicá-lo, por qualquer modo, em virtude de sua filiação a um sindicato ou de sua participação em atividades sindicais, fora das horas de trabalho ou com o consentimento do empregador, durante as mesmas horas”. A Convenção nº 87, que embora não ratificada pelo Brasil, figura como convenção fundamental que deve ser, portanto, aplicada em âmbito interno, independentemente de ratificação. Ela refere em seu Artigo 3º, ponto 1: “as organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representantes, o de organizar sua administração e suas atividades e o de formular seu programa de ação”. Essas regras precisam figurar em nossas pretensões e decisões e sua inobservância pode e deve resultar denúncia junto ao Comitê Sindical da OIT. O Brasil, aliás, já foi processado pela prática de conduta antissindical mais de uma vez.

Em uma segunda instância, penso que o próprio movimento coletivo precisa compreender o caráter histórico e para além da regulação estatal, de se reveste a greve, como fato social. E voltar a utilizá-la inclusive como instrumento de resistência contra os ataques que tal direito vem sofrendo. Ainda, é preciso efetivar direitos sociais trabalhistas, especialmente aquele já contido no art. 7, inciso I, da Constituição, segundo o qual não pode haver despedida arbitrária no Brasil. Essa é uma regra essencial para que as trabalhadoras e trabalhadores tenham condições reais de exercer a resistência, cuja aplicação independe de qualquer alteração legal, seja porque a Convenção 158 da OIT está vigente em âmbito interno, pois subjudice a denúncia realizada pelo governo de FHC (ADI 1625, cujos votos se encaminham para o reconhecimento de sua nulidade), seja em razão da regra expressa do parágrafo segundo do art. 5 da Constituição, que reconhece como direitos fundamentais aqueles decorrentes de tratado dos quais o Brasil “seja parte”, seja ainda pela regra expressa do artigo oitavo da CLT, que estabelece o direito comparado como fonte do Direito do Trabalho.

BdF-RS: Como garantir esse direito  em um período de retrocesso?

VSS: Garanti-lo é tarefa do Poder Judiciário e passa pela não aceitação de sua criminalização e pela garantia de aplicação das disposições que já existem, especialmente nossa Constituição e os tratados internacionais antes citados. As decisões que referi antes revelam que essa tarefa não vem sendo integralmente cumprida. Daí a necessidade de que haja protagonismo da própria classe trabalhadora intensificando ainda mais o exercício desse direito, a fim inclusive de provocar a discussão pública que não se tem feito: que a possibilidade concreta de mobilização e resistência é condição de possibilidade da democracia.

BdF-RS: Por que os trabalhadores devem aderir a greve?

VSS: Toda vez que o Estado coíbe movimentos paredistas está, em realidade, buscando neutralizar a insatisfação social. O problema é que essa insatisfação irá se materializar em algum outro campo de forças, em algum outro cenário, e talvez não seja útil para ninguém que isso ocorra. Esse hiato entre o avanço operado pela Constituição de 1988 e pelas normas internacionais do trabalho, e a postura que o Poder Judiciário vem adotando diante da greve precisa ser urgentemente debatido, especialmente em tempos de desmanche de direitos sociais como o que enfrentamos, porque poderá implicar outras formas de insurgência não mediada pelo Estado e que por ele dificilmente poderá ser contida.

BdF-RS: Como tu vê, nesses seis meses de governo, as questões relacionadas aos direitos trabalhistas?

VSS: O Brasil vive um momento de luto em relação aos direitos liberais e sociais, que é emblematicamente representado pelo primeiro discurso de Jair Bolsonaro para o mundo capitalista ocidental, em Davos, quando afirmou que “assumiu” o Brasil “em uma profunda crise ética, moral e econômica”. Afirmação verdadeira, que pode ser confirmada tanto por escândalos envolvendo governos anteriores, quanto pela notícia de que pessoas que passaram pelo gabinete do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) fizeram transferências bancárias para uma conta mantida pelo ex-policial militar Fabrício José Carlos de Queiroz, seu motorista. Ou então pela notícia de que, tão logo a investigação veio a público, foi editado o Decreto nº 9.690, que aumenta o número de pessoas que podem atribuir sigilo aos dados que antes poderiam ser solicitados pela Lei de Acesso à Informação, de 2011. Ou pela proibição de veiculação de uma propaganda que tinha atores negros, pela criação de um órgão que irá investigar o “perfil do candidato” antes da nomeação para cargo público, inclusive em universidades, ou ainda pelo corte radical nos orçamentos das universidades federais e suspensão de todas as bolsas de mestrado e doutorado no país. A profunda crise ética, moral e econômica, portanto, está bem longe de ser superada.

O Presidente também afirmou em Davos que “somos o país que mais preserva o meio ambiente”, discurso desmentido em poucos dias pelo desastre do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, deixando um legado de mais de 400 mortos, que havia sido anunciado justamente pelo Brasil de Fato em novembro de 2018, na reportagem sobre o “Relatório de Segurança de Barragens (RSB) de 2017, divulgado pela Agência Nacional de Águas (ANA)” segundo o qual “45 barragens foram consideradas vulneráveis e sob risco de rompimento em 2017”. Em 11 de dezembro de 2018, o Conselho Estadual de Política Ambiental aprovou a ampliação de duas minas em Brumadinho e Sarzedo, apesar das denúncias. Outro exemplo da forma como o atual governo cuida do meio ambiente, é a liberação de 169 agrotóxicos apenas este ano. A permissão envolve a liberação da comercialização de substâncias como o Metomil, o Imazetapir e o Sulfoxaflor, notadamente prejudiciais à saúde humana e de uso proibido em vários países. No que diz com os direitos trabalhistas, a situação é ainda mais grave.

O STF vem chancelando as alterações promovidas na CLT e tramitam a PEC 300, que propõe a alteração do artigo sétimo da Constituição, para que a jornada regular no Brasil passe a ser de 10 horas e para reduzir o tempo que o empregado tem para ajuizar uma demanda judicial, de dois anos para três meses após o momento da despedida e a PEC 06/2019, que propõe alterações nas regras do sistema de seguridade social. A terceirização e a privatização vem sendo amplamente estimuladas. Direitos sociais e liberdades individuais, portanto, estão em perigo. Precisamos estar atentos e ser diligentes, para que não entremos para a história como a geração que sacrificou toda a história de construção de direitos em nosso país.

A reforma trabalhista caminha para o seu segundo ano. Na época, o governo afirmava que ela traria novos empregos, pelos números atuais de desemprego (de acordo com o IBGE o Brasil tem 13,1 milhões de desempregados até fevereiro). Diante disso que avaliação tu faz sobre essa reforma? Que impactos e mudanças ela de fato trouxe?

Ao contrário, não apenas não houve geração de empregos, mas também aumentou o número de desempregados, atingindo mais de 13 milhões de pessoas em 2019. E já são 27,9 milhões de pessoas “subutilizadas”. Esse é um dado que sequer reflete a realidade, pois apenas figuram como desempregadas ou subutilizadas pessoas que possuem CTPS mas não tem registro de vínculo de emprego no momento da pesquisa, pessoas que estão nas estatísticas. A retirada de direitos sociais é a negação da estabilidade no convívio social. É a impossibilidade de consumo a longo prazo, de que os trabalhadores tenham tranquilidade para programar a própria vida.  É a potencialização da lógica de descarte, aumentando a ansiedade e o estresse e, com isso, gerando ainda mais adoecimento e angústia, pelo desconhecimento de como será o dia seguinte. A fragilização e a retirada de direitos sociais trabalhistas tem como efeito real subempregos, terceirização, miséria e violência. Com a “reforma”, aumentou o número de despedidas (várias instituições bancárias e o próprio governo anunciaram e promoveram PDV’s – Plano de Demissão Voluntária); muitos trabalhadores e trabalhadoras tiveram seus contratos transformados em trabalho intermitente ou terceirizados; multiplicaram-se os falsos autônomos e a lógica da remuneração por produtividade, em que as pessoas trabalham sem saber ao certo quanto receberão ao final do mês. Além disso, os Sindicatos estão asfixiados, alguns inclusive já fecharam as portas.

O único efeito comemorado da “reforma” é a redução no número de demandas ajuizadas. Esse é um dado real, mas nada há para ser comemorado. A redução não decorreu da diminuição dos conflitos entre capital e trabalho, nem de uma consciência dos empregadores em cumprir tempestivamente os deveres que decorrem de uma relação de emprego. É resultado do medo, em razão das regras inconstitucionais de vedação de acesso à justiça inseridas na CLT. Um medo fortemente incentivado pela mídia, que fez questão de divulgar situações atípicas em que trabalhadores são condenados a pagamento de valores superiores àqueles que recebem no processo, por não conseguirem convencer o juiz de todas as suas alegações. Uma das principais maldades contida na Lei 13.467 é a vedação do acesso à justiça através da cobrança de honorários de advogado e custas de quem, mesmo sendo pobre e beneficiário da gratuidade da justiça, ajuíza demanda e não convence o Juiz de que tem razão. Gratuidade que, segundo o artigo 5o da Constituição, deve ser integral. É essa a exclusiva razão para a redução do número de ações. Estamos impedindo que as lesões a direitos fundamentais cheguem ao Poder Judiciário, não que elas sejam perpetradas. Devíamos ter vergonha de comemorar a redução do número de demandas por um tal artifício, afinal outorgamos ao Estado o monopólio da jurisdição, o que significa dizer, especialmente no que concerne às relações de trabalho, que as trabalhadoras e os trabalhadores não têm alternativa, que não seja acionar o Poder Judiciário Trabalhista, quando se acreditam alvo de dano perpetrado em decorrência do trabalho.

BdF-RS: Que avaliação tu faz da reforma da previdência, caso ela seja aprovada?

VSS: O que se pretende com mais essa “reforma” é a viabilização de um negócio altamente lucrativo: os fundos de pensão que, não por acaso, são geridos por grandes multinacionais e instituições financeiras. Portanto, a PEC 06, que nada reforma, apenas destrói, nada tem de positivo. Propõe ainda mais desmanche, agora com proporções capazes de comprometer não apenas a nossa, mas também a sobrevivência digna das gerações futuras. Em resumo, propõe exclusão do direito ao FGTS e acréscimo de 40% para aposentados; mudança (para pior) das regras para aposentadoria dos trabalhadores deficientes e pagamento do auxílio-reclusão; limitação à cumulação de pensão por morte com aposentadoria. Aposentadoria integral apenas com 40 anos de contribuição; 20 anos como tempo mínimo de contribuição para aposentadoria proporcional de contribuintes urbanos; aposentadoria dos trabalhadores rurais apenas com 60 anos de idade e 20 de contribuição. Aposentadoria dos professores apenas com 60 anos; redução do valor da aposentadoria por invalidez e da pensão por morte; fim da aposentadoria especial em caso de atividade insalubre; o BPC – benefício de prestação continuada é substituído por uma renda de R$ 500,00 a R$ 750,00; a idade mínima para sua obtenção, no valor de 1 salário mínimo, passa a ser de 70 anos e para idosos de 60 a 70 anos, em estado de miserabilidade, o benefício proposto é de R$ 400,00, inferior ao valor da cesta básica em nosso Estado.

Há, ainda, previsão de que apenas quem ganha até um salário mínimo receberá abono salarial. A aposentadoria só será obtida com 65 anos para homens e 62 para mulheres, idades que serão majoradas conforme aumento da expectativa de vida pelo IBGE, se a PEC 06 for aprovada. Tudo para economizar 1 trilhão de reais, que sequer seria utilizado em saúde, educação ou moradia, pois a EC 95 congelou gastos sociais por 20 anos; para combater privilégios, embora os militares não estejam contemplados no texto; para cobrir déficit que, segundo a CPI do Senado, não existe. O que há é Desvinculações de Recursos da União (DRU), que só em 2015 usou para o pagamento da dívida pública R$ 63 bilhões. Há trabalho sem registro; desonerações na folha de pagamento que em 2015 somaram R$ 13,2 bilhões, isenções tributárias que no mesmo ano somaram R$ 2 bilhões e dívidas de empresas privadas no montante de R$ 450 bilhões. Esses dados mostram que os argumentos para o desmanche da previdência também não são reais. Se aprovado, portanto, esse desmanche implicará imediata redução do consumo interno, pois retirará capacidade de consumo de um número muito expressivo de pessoas; irá empobrecer ainda mais quem hoje sobrevive com renda de até dois salários mínimos, prejudicará o acesso dos jovens ao mercado de trabalho e condenará nossos idosos à indigência.

BdF-RS: Como a reforma trabalhista aprovada em 2017 e as novas propostas de reformulações afetam a Previdência?

VSS: De inúmeros modos, todos eles negativos. A Lei 13.467 permite contratações precárias, com salários mais baixos e sem qualquer segurança, o que significa maior adoecimento, em decorrência das condições de trabalho. Adoecimento que também é potencializado pela terceirização, que tanto a Lei 13.467 quanto a 13.429 estimulam. Há vários estudos demonstrando que ocorrem muito mais acidentes típicos e adoecimentos em trabalho terceirizado. E isso significa, concretamente, recurso à previdência social. Do mesmo modo, a alteração legislativa que estabelece que o pagamento de prêmios por metas é indenizatório, mesmo quando contrapresta o trabalho realizado. Ora, bem sabemos que o pagamento de indenização não versa recursos para a previdência, reduzindo portanto o aporte para o uso no pagamento de benefícios e aposentadorias. A facilitação das despedidas também afeta diretamente o sistema de previdência, pois ao serem despedidos os trabalhadores recorrem ao sistema de previdência para conseguirem sobreviver. O trabalhador intermitente, recebendo apenas pelas horas de trabalho que realiza, também não conseguirá contribuir para a previdência com valores suficientes para garantir, por exemplo, a obtenção futura da aposentadoria. A “reforma” permite trabalho de 12h por dia sem intervalo. Não é preciso muito para concluir que trabalhar em tal ritmo causa adoecimento e, portanto, traz como consequência um número maior de pessoas recorrendo à previdência social. O desmanche da previdência, proposto pela PEC 06, vai no mesmo sentido, pois reduz valores de benefícios e exige mais idade e tempo de contribuição para a aposentadoria. O resultado será pessoas trabalhando de forma mais precária, mais horas por dia e, portanto, muito mais sujeitos ao adoecimento. Em resumo, exigir mais trabalho, pagar menos salário, precarizar os vínculos e dificultar o acesso à justiça, constituem receita para uma sociedade de pessoas doentes, frustradas, angustiadas. Isso afeta não apenas o sistema de seguridade social, como também o próprio tecido social, provocando a degradação do equilíbrio emocional e social necessários para um convívio minimamente saudável.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu recentemente uma nova modalidade de contratação trabalhista, por meio da chamada carteira de trabalho verde e amarela, proposta de campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ele também chamou a legislação trabalhista brasileira de “fascista” e disse que ela aprisiona os jovens. Como tu vê essa afirmação e a possível criação dessa carteira, que consequências ela pode trazer?

Essa afirmação revela desconhecimento sobre a legislação trabalhista, pois a CLT é a consolidação de regras que em sua imensa maioria já existiam e foram produzidas nas duas primeiras décadas do século XX. Além disso, a maioria absoluta de seus artigos foi modificada após a década de 1940, de modo que não faz sentido tentar atrelar a legislação trabalhista ao caráter fascista de determinado governo. Quanto à carteira verde e amarela, nem mesmo o Presidente ou seu Ministro da economia dizem exatamente a que se referem. Na medida em que temos previsto na Constituição o direito fundamental à relação de emprego (artigo 7, I), não há como instituir outra forma de contratação sem ferir o texto constitucional. É preciso salientar também que a contratação sem qualquer parâmetro de proteção nada tem de novo. Em realidade, essa era a lógica do século dezoito e toda a legislação social (previdenciária e trabalhista) surge exatamente como resposta, necessária inclusive para a própria manutenção do sistema do capital, às consequências sociais nefastas dessa possibilidade de livre contrato. Trazer de volta essa lógica ultraliberal, como regra instituída pelo Estado, implicaria grave retrocesso social, portanto.

BdF-RS: A CLT, da maneira como está atualmente, precisa ser reformulada? Quais são os pontos positivos e negativos?

VSS: No momento atual, certamente qualquer alteração a ser proposta na CLT correria sério risco de servir a essa lógica de desmanche, portanto, melhor que não defendamos reforma alguma, mas sim que busquemos aplicar as regras de proteção nela contidas. Em um mundo ideal, se não estivéssemos enfrentando todo esse ataque aos direitos sociais, haveria certamente reformulações possíveis e até mesmo necessárias para que houvesse efetiva proteção a quem trabalha no Brasil. Um exemplo disso é o das regras sobre a despedida. Pelos termos da CLT, o trabalhador despedido por alegação de justa causa perde o direito às férias proporcionais, algo já superado pelo texto da Convenção 132 da OIT, ja ratificada por nosso país. Além disso, quando prevê as consequências da justa causa para o trabalhador e para o empregador, refere consequências absolutamente diversas, que penalizam apenas o empregado. As hipóteses de justa contidas no artigo 482 da CLT trazem em si o gérmen da discriminação, incompatível com a lógica pretensamente contratual que se atribui à relação de trabalho. É de punição que se trata. Às faltas cometidas pelo empregado atribui-se peso suficiente a legitimar não apenas a perda do emprego, como também de verbas cujo direito o trabalhador adquiriu no curso do contrato. Pelo texto da CLT, o empregador que comete uma das faltas descritas no art. 483 da CLT nada perde. Absolutamente nada! Caso o empregado veja reconhecida a falta do empregador, através de demanda trabalhista que por vezes lhe impõe uma espera de meses, receberá, ao final do processo, exatamente as mesmas verbas a que faria jus caso dispensado por iniciativa da empresa. As faltas atribuídas ao empregador, portanto, não geram penalização. Ao contrário, aquelas atribuídas ao empregado implicam sua punição, com a perda sumária e imediata do posto de trabalho, além da perda do direito ao prévio aviso para que possa buscar novo posto de trabalho e da perda da indenização prevista no texto constitucional. Implica, também, para o entendimento jurisprudencial predominante, perda das férias proporcionais e da gratificação natalina proporcional, verbas cujo direito o trabalhador adquire mês a mês, pelo trabalho realizado.

Outro exemplo, é a falta de previsão de ampla defesa para o trabalhador acusado de justa causa, como determina o artigo 5 da CF, quando refere que a ampla defesa e o contraditório devem ser garantidos “aos acusados em geral”. Outro exemplo, ainda, é o artigo 62 da CLT, que precisa ser eliminada, pois simplesmente retira o direito à observância das regras de limitação da jornada para determinadas categorias de trabalhadores, quando a CF fixa limites para a troca de tempo por remuneração sem excetuar trabalhador algum. A “reforma” aprovada em 2017 não apenas deixou de eliminar essa inconstitucionalidade, como também acrescentou às hipóteses do art.62 a do trabalhador em teletrabalho, revelando seu caráter anacrônico e perverso. Por fim, é preciso dizer que existem muitos pontos positivos na CLT. Um deles é o fato de prever um processo célere e simplificado, contendo regras materiais e processuais em um mesmo texto e, portanto, reconhecendo que o processo só se justifica enquanto instrumento de realização do direito material. Tem artigos fundamentais como o artigo nono, o 444 e o 468, que vedam qualquer ato que implique desproteção. Há, também, para além de regras importantes que garantem proteção, o caráter simbólico da CLT, que não pode ser desprezado, porque representa uma opção estatal de proteção, uma declaração de reconhecimento da assimetria e do assujeitamento objetivo que está presente nas relações de troca entre capital e trabalho.

BdF-RS: Quais desafios do século XXI para o mundo do trabalho?

VSS: É urgente compreendermos que toda alteração promovida na espinha dorsal da legislação do trabalho e da previdência social, junto com o desfacelamento de instituições que garantem direitos sociais, com a intervenção direta na educação através de corte de orçamento e disciplina autoritária, faz parte de um movimento que precisa ser visto sob perspectiva mais ampla.

Em 2016, retiramos do poder uma Presidenta eleita sob a fórmula democrática, com argumentos expostos nos votos dos parlamentares, que não guardavam relação alguma com o crime de que a acusavam. Menos de um ano depois, o mesmo parlamento se recusou a processar um presidente ilegítimo, apesar da existência de provas (inclusive divulgadas pela imprensa) de crime de responsabilidade, sem que houvesse revolta popular, apesar da ciência de que valores foram liberados e MP’s (Medias Provisórias) foram redigidas para determinar o rumo dessa votação. Em 2018, um ex-Presidente foi preso sem decisão transitada em julgado e outro foi eleito sem que as notícias falsas veiculadas durante o processo eleitoral fossem de qualquer modo coibidas; sem que os discursos fascistas vertidos durante a campanha fossem problematizados e sem que se questionasse a impossibilidade de voto imposta a 3,3 milhões de brasileiras e brasileiros. Em 2019, todos os fatos até agora revelados, indicando a possibilidade de ligação entre a família do Presidente e a execução de Marielle Franco foram ignorados.

Estamos ignorando os parâmetros da democracia liberal e a história nos mostra que essas experiências geralmente resultam governos autoritários e violentos. A garantia das liberdades individuais e dos direitos sociais compõem a tessitura social mínima para que se possa seguir afirmado que vivemos em um Estado de Direito e, portanto, para que se possa seguir exigindo a observância das regras do jogo. Todo tipo de repressão à liberdade de expressão e redução de direitos compromete o próprio discurso do capital. Se o Estado de Direito é a cortina de fumaça que esconde a dominação que o capital exerce sobre o trabalho, as liberdades individuais e os direitos sociais são justamente o preço que essa nova forma de convívio social se dispôs a pagar pelo disfarce. Vale dizer: só é possível seguir acreditando que de alguma forma somos livres para contratar e conviver em sociedade, se o Estado agir como garantidor das liberdades e das condições mínimas de vida digna. É o mínimo, o resto é barbárie.

 

 

Fonte: Brasil de Fato

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