Campanha alerta que reduzir normas regulamentadoras vai aumentar acidentes de trabalho
Modernização e economia ou retrocesso e ônus? O governo federal está revisando as 36 normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho, as chamadas NRs, com a intenção de reduzi-las em 90%. A primeira etapa de alteração das regras, que extinguiu uma e modificou outras duas, foi anunciada há duas semanas pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e divide opiniões quanto aos benefícios da medida.
Ao apresentar a proposta, o governo estimou uma economia de R$ 68 bilhões em dez anos para as empresas com a simplificação de cerca de 6,8 mil especificações distintas de fiscalização decorrentes das normas principais. O que pode estar em jogo, entretanto, é a saúde e a segurança do trabalhador, conforme explica o técnico de segurança do trabalho Adriano Dornelles da Silva, que criou um abaixo-assinado online contra a redução das NRs.
“A alteração das normas, especialmente a NR 1 e 12, pode representar aumento de situações de insegurança nos ambientes de trabalho pela falta de medidas administrativas e técnicas de prevenção de acidentes e doenças, desde algo mais “simples”, através de controle ergonômico, até situações que representam falhas em procedimentos por falta de capacitação do trabalhador ao operar máquinas e equipamentos, podendo gerar amputações, lesões graves e até mesmo a morte em linhas de produção”, detalha Adriano, que até o momento já recolheu quase 32 mil assinaturas na petição aberta na plataforma Change.org Brasil.
O primeiro pacote de alteração revogou a norma regulamentadora de número 2, que estabelecia a obrigatoriedade de um estabelecimento ser inspecionado por um fiscal do trabalho antes da abertura. Já as NRs 1 e 12, citadas por Adriano, sofreram modificações. A primeira, que trata especificamente sobre a saúde e segurança no trabalho, perdeu a exigência de novo treinamento para o trabalhador que mudar de emprego, mas continuar na mesma função, além de acabar com a obrigatoriedade da elaboração de programas de prevenção e riscos ambientais para micro e pequenas empresas com atividades de baixo risco.
Já as alterações feitas na norma 12 preocupam por flexibilizar a segurança dos trabalhadores que lidam diretamente com a operação de máquinas. Com a mudança, a proteção dos empregados será feita de acordo com a avaliação de risco de cada equipamento.
“A NR 12, em alguns itens retrocede, como exemplo, ao deixar a carga horária de treinamento a critério do empregador. Isto abre margem para que a capacitação dos trabalhadores para operação segura de máquinas e equipamentos seja relativizada por empregadores em geral. Apesar de fornecer os requisitos mínimos dos cursos, ao permitir que o empregador diga qual a carga necessária para treinar seus funcionários, haverá abertura para que muitos forneçam certificados com a mínima instrução possível aos trabalhadores”, pondera Adriano.
Outro ponto questionado pelo técnico de segurança do trabalho e autor do abaixo-assinado é sobre o argumento defendido pelo governo de que a redução das normas trará relevante economia aos empregadores.
Para Adriano, a prevenção é sempre a melhor forma de investimento e a medida pode acabar tendo um efeito contrário, já que menos regras de segurança podem significar menor prevenção e consequentemente maior risco de acidentes e óbitos, o que geraria o ônus do pagamento de mais indenizações por parte das empresas e mais auxílios previdenciários custeados pelo próprio Estado.
“Na realidade, o atual governo, ao desburocratizar e desregulamentar itens importantes nas NRs, acaba trazendo para o próprio Estado o ônus do custo de acidente e de doenças do trabalho, ao ter que atender, via SUS, o número crescente de trabalhadores acidentados, bem como, ao ter que bancar auxílios previdenciários e acidentários”, esclarece. “O atual governo desconhece, ou faz de conta desconhecer, que a prevenção é a melhor forma de economia de gastos empresariais”, completa o técnico que tem mais de 10 anos de experiência no ramo.
Atuando exclusivamente na área de segurança do trabalho desde 2012, Adriano já participou de casos de interdições pós-fiscalização e desenvolveu trabalhos de adequações após acidentes fatais em empresas, especializando-se em normas de segurança e saúde em espaços confinados e em trabalhos em altura, as NRs 33 e 35 respectivamente. Ao longo da carreira já presenciou inúmeros casos que exemplificam o conflito “bônus x ônus” da medida.
Adriano conta que, em 2017, um trabalhador morreu após sofrer uma queda em um empreendimento no interior do Rio Grande do Sul. No local do acidente não havia medidas ou equipamentos de prevenção, nem ao menos placas sinalizando o risco de queda em altura.
Segundo o técnico lembra, o equipamento necessário para evitar o acidente custa hoje em torno de 900 a 5 mil reais, porém o resultado do acidente foi a interdição da empresa pelo antigo Ministério do Trabalho, o pagamento de mais de meio milhão de reais para a família da vítima, além de adequação de todas as suas instalações ao curso de R$ 200 mil.
“Além de ter custos com assessoria jurídica e técnica, que em sua totalidade custaram inúmeras vezes mais do que o valor do sistema de prevenção que teria evitado todo o transtorno”, comenta Adriano.
“Havendo acidente ou comprovada doença desenvolvida em decorrência do trabalho, o ônus é devido à empresa de igual modo, a responsabilidade civil, e muitas vezes criminal, vai ser devida aos empregadores ou eventuais culpados por não prover meios de prevenção daquele óbito ou amputação. E é importante ressaltar que com a desregulamentação será natural o aumento de casos de acidentes”, acrescenta.
Umas das justificativas do presidente Jair Bolsonaro para a revisão das NRs refere-se à necessidade de simplificação dos mais de 6 mil itens distintos de normas de fiscalização atualmente submetidos aos empregadores, o que, segundo a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, gera custos e burocratização às empresas, dificultando a criação de empregos.
Adriano Dornelles, entretanto, rebate essas alegações esclarecendo que o conjunto de regras trata de ramos diversos de atuação, sendo que cada empresa precisa se adequar apenas às normas que dizem respeito ao seu contexto e área de atuação.
“Cada qual possui legislação que deve ser seguida de acordo com os riscos existentes no seu ambiente, levando em consideração, ainda, o número de funcionários, o CNAE (Cadastro Nacional de Atividade Econômica) e a realidade regional”, explica o técnico. “É correto afirmar que inexiste empresa que necessita adequação total nas 37 NRs. Alguns exemplos: a NR 22 é para mineradoras, a NR 31 somente tem validade para propriedades rurais, a NR 32 é específica para estabelecimentos da área da saúde e a NR 37 para instalações portuárias”.
Ataques à Justiça do Trabalho
Cabe à Justiça do Trabalho proteger os direitos previdenciários e trabalhistas dos empregados e, por exemplo, garantir o cumprimento de indenizações por parte dos empregadores aos seus funcionários.
Logo que assumiu o mandato, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a extinção da Justiça do Trabalho, alegando um “excesso de proteção” que não ocorre em outros países nos quais os conflitos trabalhistas são julgados e solucionados pela justiça comum.
Outra decisão do governo federal foi acabar com o Ministério do Trabalho, diluindo suas atribuições entre secretarias de outros três – o da Economia, da Cidadania e da Justiça e Segurança Pública.
O conjunto de ações relacionadas às políticas públicas para o trabalhador levou à formação de outra mobilização na plataforma Change.org, ainda no início deste ano. O advogado Ramiro Castro, especialista em Direito Internacional do Trabalho e pós-graduando em Direito do Trabalho pela Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul (FEMARGS), lidera uma campanha online em defesa da Justiça do Trabalho. O abaixo-assinado já ultrapassou a marca de 237 mil apoiadores.
“Não há possibilidade de uma sociedade que não tenha uma justiça do trabalho, e longe de ser uma ‘jabuticaba’, ela é um patrimônio do país, que já arrecada muito para os cofres público de empregadores que deviam para a Previdência e FGTS, por exemplo. E é uma das justiças mais céleres e eficientes”, ressalta o advogado e autor da petição online.
O criador do abaixo-assinado em defesa da Justiça do Trabalho também opinou sobre a revisão das normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho. Ele acredita que, com a medida, o governo não entende ou ignora que está “prejudicando a economia e as próprias empresas com o fim das NRs e da legislação protetiva”. Para ele, a flexibilização e o procedimento de dificultar o acesso à justiça é “uma bomba relógio social e econômica”.
Apesar de enxergar a atual política para o trabalhador com pessimismo, o advogado recebe com animação as 237,5 mil assinaturas que sua campanha conquistou até o momento. “Ainda temos bastante gente que quer defender o trabalhador e sabe que não estamos tratando de mais um número, um gasto, ou um fator de proteção, mas estamos falando de seres humanos, que devem ser tratados com dignidade, devem ganhar adequadamente e devem ter as folgas necessárias para poder viver, curtir sua família e descansar”, finaliza Ramiro.
O outro lado
A Change.org entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, do Ministério da Economia, que enviou uma nota explicando que a “modernização nas normas regulamentadoras não altera a proteção ao trabalhador e o padrão de atuação da auditoria-fiscal do Trabalho”.
A pasta informou, ainda, que a saúde e a segurança dos empregados são tratadas como prioridade e que todas as mudanças aprovadas para a revisão das NRs 1 e 12 e a revogação da NR 2 ocorreram em consenso entre os representantes do governo, dos trabalhadores e dos empregadores após extenso debate.
A nota diz ainda que “uma das condições para as normas serem revistas é de não permitir a elevação da taxa de acidentes” e que o processo de revisão identificou redundâncias, sobreposições e ineficiências nas normas regulamentadoras.
A Secretaria Especial de Previdência e Trabalho comunicou, ainda, que assinou acordos de cooperação técnica com as federações das indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Estado de Santa Catarina (Fiesc) para o desenvolvimento de ações conjuntas em segurança e saúde no trabalho e que, ainda neste ano, iniciará a revisão da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho, estabelecida pelo Decreto 7.602/2011, “buscando construir uma estratégia nacional para redução de acidentes”.
Fonte: Carta Capital